Roberta
Pennafort
Estadão,
21/09/2014
Pouco
antes de partir, Sergio Britto (1923-2011) pediu à família que não deixasse
morrer suas memórias. Durante 65 anos de vivência artística, ele se dedicou a
colecionar programas de peças de teatro, fotos e álbuns de colagens, em que
reunia matérias de jornais e revistas não só sobre ele e seus espetáculos, mas
também sobre os colegas. O desejo do ator, de ver seu acervo protegido e
divulgado, se realiza agora, com a criação do portal www.sergiobritto.com,
fruto do Projeto Sergio Britto Memórias.
Quem
toca a iniciativa, que começou um ano atrás, com a higienização e a
digitalização do material, são a sobrinha, Marilia, filha de seu irmão, Hélio,
e a filha dela, Renata. "Sergio sempre gostou de receber estudantes e
pesquisadores em casa para ver o acervo. Tem muita coisa faltando, porque
levavam emprestado e não devolviam. A preocupação dele no fim da vida era que o
material se perdesse", diz Renata, que, com a mãe, conseguiu recursos da
Petrobrás e da Secretaria de Estado da Cultura, no valor de R$ 634 mil, para
viabilizar o projeto.
Em
vida, a memória fabulosa rendeu espetáculos e livros baseados nas
reminiscências, além da fama de grande contador de histórias. Para além disso,
o arquivo é rica fonte de consulta para os interessados em dramaturgia e
história do teatro brasileiro, do qual Britto é nome exponencial.
Tudo
estava na casa do ator em Santa Teresa, bairro de vocação artística entre o
centro e a zona sul do Rio, e, com sua morte, foi doado para a Faculdade da
Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Britto foi um dos fundadores da CAL, em
1982. A escola de formação se tornou uma das principais do Rio.
Na
biblioteca da faculdade estão, além das 2.500 fotos e 38 álbuns, seus 1.800
livros, quatro diários de viagens, nos quais ele se detinha nos aspectos culturais
do lugar visitado, e a coleção de filmes em VHS e DVDs. "Ele se
interessava por tudo, não só por teatro. Leu toda a série Crepúsculo. A idade
não lhe tirou a curiosidade", revela Marilia. Nas estantes da biblioteca,
Kafka e teóricos da dramaturgia de diversas tradições ladeiam Marian Keyes, do
best-seller Melancia.
A
ênfase natural de todo esse conteúdo é ao teatro, a paixão maior. Também há
registros das óperas que dirigiu, os programas de TV (gravou o Arte com Sergio
Britto por dez anos e participou de novelas e séries) e as produções no cinema.
"Sou um homem com certa inteligência, algum talento, mas com uma vocação
enorme para o teatro", ele dizia.
Nas
fotos, registros dos grupos de que participou, com destaque para o Teatro dos
Doze (em 1949), dos Sete (entre 1959 e 1965), dos Quatro (1978- 1993) e o
Teatro Brasileiro de Comédia (1956-1959), e das casas que dirigiu, como o
Centro Cultural Banco do Brasil do Rio (em 1989) e o Teatro Delfim (nos anos
1990).
Entre
as figuras mais recorrentes da coleção fotográfica estão contemporâneos como
Fernanda Montenegro - que sempre ressaltou o caráter enciclopédico do amigo ao
dizer que ele sabia mais de sua vida do que ela própria -, Fernando Torres e
Ítalo Rossi. "O acervo é do Sergio Britto, mas é toda a história do teatro
brasileiro. Estão todos representados e sabiam que podiam contar com ele quando
precisavam de fotos ou informações", acredita a sobrinha.
No
portal, que entra no ar na terça-feira, a trajetória de Britto está em ordem
cronológica, de 1945 a 2011 - a última peça, Recordar É Viver, com Suely
Franco, foi encenada até dez meses antes de sua morte.
O
lançamento será uma celebração da vida e da arte do homem de teatro, no Laura
Alvim, em Ipanema. Usada para divulgar o site, uma frase da peça Meninos, Eu
Vivi, baseada em lembranças pessoais e escrita por ele em 1998, resume a
intenção do ator e do projeto: "Eu quero desabotoar minha camisa de
memórias e provar ao público que ainda estou vivo".