Universo HQ, 26/10/2015
As revistas em quadrinhos continuam aumentando cada vez mais seu status de moeda valiosa na sempre hiperativa área de colecionáveis, ao menos nos Estados Unidos e em alguns países da Europa.
De acordo com o site britânico de negócios This is Money, o valor de gibis clássicos aumentou cerca de 10% desde a crise econômica mundial de 2008, desencadeada pelos “títulos podres” do mercado imobiliário nos EUA.
“Quadrinhos do Superman, Batman e de outros personagens das eras de ouro e de prata são investimentos fixos realmente fortes”, disse ao site do jornal norte-americano KVAL o proprietário da loja Nostalgia Collectibles, Darrell Grimes, de Eugene, Oregon, nos Estados Unidos.
O Wall Street Journal revelou que muitos donos de comic shops norte-americanas estão investindo pesado em quadrinhos raros dessas eras clássicas. Seria uma saída para a retração nas vendas de gibis contemporâneos, muitos dos quais tiveram os preços reajustados nos últimos anos. Dependendo da edição, um único exemplar dessas raridades, vendido a um colecionador mais abastado, garantiria a féria do mês para grande parte dos lojistas.
Na Europa, informa a BBC News, recentemente aconteceu um estouro de vendas no mercado de artes originais de quadrinhistas clássicos como Jack Kirby, ofertados em sites de leilão dos Estados Unidos. Isso é justificado pelo câmbio entre dólar e euro, favorável aos europeus.
Também no Velho Continente, a popularidade dos Smurfs vem sendo explorada economicamente não apenas por empresas licenciadas – que lançaram no mercado, dentre outros produtos, estatuetas com preço de até US$ 1,500 por item -, mas também por colecionadores que tiram do sótão alguns velhos brinquedos e materiais relacionados aos personagens e os comercializam em vários canais de negociação.
Inflacionando
Não é novidade que, principalmente nos Estados Unidos, há pelo menos duas décadas o comércio de quadrinhos antigos e colecionáveis afins se transformou em ganha-pão para muita gente. O que vem acontecendo nos últimos anos, porém, é um aumento exacerbado na demanda, graças também à adesão de pessoas antes alheias a essa prática. É uma bolha que cresce rápido demais e pode estar prestes a estourar, mesmo porque o fato de esse mercado permanecer incólume às crises econômicas é uma aberração que a lógica deverá tratar de corrigir em pouco tempo.
Em 2008, especialistas estimaram que o ano fechou com a espantosa cifra de 100 milhões de dólares arrecadados em todo o planeta na área de artes relacionadas a quadrinhos, incluindo nessa lista gibis, ilustrações originais e demais artigos, segundo projeções da revista de cultura pop Condé Nast Portfolio.
Naquele ano, em meio a toda a turbulência por que passou a economia mundial, uma pintura estrelada por Superman e Batman bateu recorde de venda em Hong Kong, na China, como anotou o site do canal de finanças Bloomberg. O quadro mostrava os super-heróis usando um sanitário e foi arrematado em leilão pelo equivalente a 618 mil dólares, a maior transação de uma obra de arte em toda a Ásia, naquele período.
Independentemente do quanto tudo isso possa ser efêmero, “os quadrinhos de super-heróis podem salvar os investidores”, como vaticinou o This is Money.
Nos últimos dez anos, vários exemplos disso ganharam destaque no mundo. E não apenas com gibis de supertipos fantasiados. Mais do que isso, muitos outros colecionáveis ligados à nona arte fazem parte desse rentável mercado.
Para ilustrar o fato com apenas alguns casos: uma família ficou milionária ao vender uma rara coleção de gibis que, nos Estados Unidos, ficou conhecida como D copies e continua gerando lucro para cada comprador que a revende. Outra família, também dos EUA, salvou a casa hipotecada ao vender suas milhares de revistas em quadrinhos. Um exemplar de Detective Comics # 27, lançado em 1939, foi arrematado por mais de um milhão de dólares. Uma cópia de Action Comics # 1, de 1938, foi vendida em leilão por US$ 3,2 milhões. Por 2,6 milhões de euros, uma ilustração de Hergé foi comprada na Europa. A suposta morte do personagem Donatello, das Tartarugas Ninja, desencadeou um procura incomum pela edição em que isso ocorreu: colecionadores adquiriram mais de um exemplar por vez e começaram a revendê-los em sites de leilão por até mais de 20 vezes o valor de capa. Uma simples página original da primeira aparição de Wolverine arrecadou 657 mil dólares. Há duas semanas, um jovem de pouco mais de 20 anos de idade arrematou uma arte original de Frank Miller por 175 mil dólares.
E em 2013, segundo o Daily Herald, um colecionador de 62 anos vendeu todo o seu acervo de quadrinhos antigos em um leilão, em apenas uma semana, por 570 mil dólares, para custear o tratamento da neuropatia periférica que o acometera. A maioria dos itens datava da década de 1940, de onde vêm alguns dos exemplares mais procurados pelos colecionadores norte-americanos.
No mesmo ano, corroborando o tamanho desse farto mercado, foi lançada nos Estados Unidos uma inusitada versão do famoso jogo de tabuleiro Monopoly (Banco Imobiliário, no Brasil), em que, no lugar de imóveis e outros bens, os jogadores participam de negociações de compra e venda de gibis raros da Marvel Comics, avaliados em alguns milhares de dólares. Para aprender, brincando, a investir em quadrinhos.
Investimento é uma palavra tão corriqueira quanto definidora para o colecionismo de gibis nos Estados Unidos. Em 2004, foi lançada a revista InvestComics, que se considera uma espécie de “Guia Wall Street” do segmento de quadrinhos. Foi distribuída gratuitamente em comic shops e, em 2005,transformou-se em um site de referência na área, orientando, dentre outras dicas, sobre o momento certo para vender ou comprar um determinado gibi.
Não faltam sites similares na grande rede dos Estados Unidos, mas não fica só nisso o leque de opções para quem necessita de informações para entrar nessa área lucrativa. Um exemplo disso é o livroComic book investing for beginners (algo como Investimento em quadrinhos para iniciantes), lançado em 2014.
Com estatísticas, projeções, dicas de como e quando começar a investir, a obra traz ainda informações sobre algumas das revistas em quadrinhos mais valorizadas da atualidade, com indicação de valores em épocas distintas – como The Incredible Hulk # 1, que em 1970 já valia seis dólares, subindo para US$ 65 mil em 2010 e, em 2013, estava sendo vendida por US$ 105 mil (uma valorização de 40 mil dólares em apenas três anos).
Mercado brasileiro
Ao contrário do que acontece lá fora, no Brasil somente os aficionados movimentam o mercado de colecionáveis de quadrinhos e afins. Investidores profissionais passam ao largo desse nicho.
Além da diferença de poder aquisitivo entre os públicos dos dois mercados, contribui para isso a falta, no País, de um mecanismo ou órgão independente que ajude na identificação e avaliação de quadrinhos antigos como peças de valor cultural, histórico e monetário, como acontece nos Estados Unidos – graças à CGC (Comics Guaranty Company) e à CBCS (Comic Book Certification Service), que graduam exemplares incluindo, dentre outros tópicos avaliados, o estado de conservação das revistas e a quantidade exata ou estimada de cópias existentes.
Nos anos 1990, a revista Wizard Brasil, da Editora Globo, ensaiou algo parecido, publicando mensalmente um guia de revistas em quadrinhos nacionais antigas com seus respectivos valores de mercado atualizados. Os critérios usados para essa avaliação nunca foram claros.
E critério é muito importante para evitar distorções. Em sites de leilão como o Mercado Livre, é possível ver um exemplar de O Pato Donald # 1 (Editora Abril, 1950) sendo vendido por um valor maior do que o alcançado por O Gibi Mensal # 1 (O Globo, 1941). É preciso lembrar que esse número do gibi do personagem da Disney já tem duas reedições no currículo, uma em 1984 e outra em 2010.
Sem levar em conta tiragem, ano de publicação, quantidade disponível no mercado, estado de conservação e outros detalhes que tornam uma edição valiosa – como lote com páginas extras, publicação em região restrita ou retirada prematura de circulação, para citar alguns exemplos -, todo o resto pode ser mera especulação. Preços exorbitantes em sites de leilão não deveriam atestar a raridade ou o valor de mercado de revistas em quadrinhos antigas no Brasil, assim como pagar uma bagatela por alguma delas não deveria cravar que valham realmente pouco.
Há dois anos, o colecionador paulista Antônio José da Silva ganhou as manchetes de sites e jornais brasileiros, depois que foi assaltado por três homens, que levaram sete mil gibis de sua coleção. Dentre os títulos roubados, estavam O Lobinho e outras revistas da década de 1940.
O prejuízo foi estimado em R$ 300 mil, mas o próprio dono da coleção não fazia ideia de quanto valiam os gibis. Segundo seu depoimento, nenhum banco aceitara realizar um contrato de seguro de sua coleção – com mais de 200 mil itens -, por não haver como quantificá-la. Nos Estados Unidos, são comuns coleções de quadrinhos seguradas por bancos ou corretoras.
Gilciliano de Oliveira, de Ribeirão Preto/SP, proprietário da ECRGO, loja dedicada à comercialização de quadrinhos raros e antigos, tem que lidar regularmente com o problema da valoração – mas garante que sempre aplica o preço mais justo possível.
Ele afirma que suas raridades valeriam muito mais no mercado dos Estados Unidos, mas no Brasil tem que levar em conta primordialmente os custos para adquirir os gibis. “Algumas negociações para comprar revistas se tornam mais difíceis, tal como no final de 2014, quando comprei uma grande coleção com cerca de oito mil itens (Disney e Turma da Mônica), dos anos de 1950 a 2000″, disse ao Universo HQ. “Foi um ano inteiro negociando com a pessoa que tinha para me vender a coleção e o preço pago daria para comprar um carro popular novo. Isso acaba elevando um pouco o preço das revistas, principalmente as mais raras.”
Para ele - cuja loja é sua única fonte de renda, há 15 anos, desde que passou a vender também pela internet-, faltam mais divulgação e interesse pela arte. “Não acredito que o poder aquisitivo do brasileiro seja determinante nisso, pois quem gosta de colecionismo, seja ele qual for, vai gastar o que puder e talvez até o que não puder no hobby.”
Seja como for, no Brasil, por enquanto, o colecionismo de quadrinhos e correlatos continua sendo mero fruto da paixão pelos personagens prediletos de cada um que compre gibis, estatuetas e memorabilias em geral. Sempre condicionando o aumento da coleção ao preço de cada objeto de desejo.
Um investimento voltado mais para o coração do que para o bolso.